terça-feira, 27 de maio de 2014

Carta de Bonhoeffer


Mais um mês se passou. O tempo passa tão rápido para você quanto passa para mim aqui? Fico muitas vezes surpreso diante disso — e quando vai chegar o mês em que você e Renate, eu e Maria, e nós dois possamos nos encontrar novamente?
Tenho a impressão nítida de que eventos momentosos estão movendo o mundo a cada dia e poderiam mudar todos os nossos relacionamentos pessoais; gostaria por isso de escrever-lhe com frequência muito maior, em parte porque não sei por quanto tempo poderei fazê-lo, e ainda mais porque queremos dividir tudo um com o outro com a maior frequência e pelo maior tempo possíveis.
Chegou ao fim o tempo em que se podia dizer tudo às pessoas por meio de palavras teológicas ou piedosas.
Estou inteiramente convencido de que quando você chegar a receber esta carta grandes decisões já estarão colocando as coisas em movimento em todas as frentes. Durante as próximas semanas precisaremos de grande força interior, e é isso que desejo para você. Devemos todos manter as mentes lúcidas, de modo a que nada nos assuste.
Em vista do que está por vir estou quase pronto a citar o δει bíblico, e sinto que “anseio olhar”, como os anjos em 1 Pedro 1:121, a fim de ver de que modo Deus irá resolver o aparentemente insolúvel. Creio que Deus está prestes a realizar alguma coisa que, quer façamos parte dela de forma aparente ou oculta, seremos capazes apenas de receber, com a maior maravilha e assombro. De algum modo ficará claro — para os que tiverem olhos para ver — que o Salmo 58:11b2 e o Salmo 9:19-203 são verdadeiros; e teremos de repetir Jeremias 45:54 para nós mesmos todos os dias.
É mais difícil para você passar por isso separado de Renate e do seu menino do que é pra mim, pelo que penso em você especificamente, como estou fazendo agora. Parece-me que seria muito mais fácil, e para nós dois, se pudéssemos passar por isso juntos, ajudando um ao outro. Mas é provavelmente “melhor” que não seja assim, e que cada um de nós o enfrente sozinho. Acho difícil não poder ajudá-lo em coisa alguma — exceto pensando em você de manhã e à noite quando leio a Bíblia, e com frequência durante o dia também.
Você não precisa se preocupar comigo de forma alguma, porque estou levando incomumente bem — você ficaria surpreso se viesse me ver. As pessoas aqui vivem me dizendo (e como você vê, sinto-me muito lisonjeado com isso) que “irradio tanta paz ao meu redor” e que “sou sempre tão alegre” — de modo que os sentimentos muito distintos desses que às vezes me assombram devem, estou achando, basear-se numa ilusão (não que eu de alguma forma acredite nisso!).
Se a religião era uma forma transitória e historicamente condicionada de auto-expressão humana, o que isso quer dizer para o cristianismo?
Você ficaria surpreso, e talvez até preocupado, se soubesse que rumo estão tomando minhas reflexões teológicas; e é aqui que sinto mais falta de você, porque não conheço ninguém mais com quem poderia discutir essas coisas a fim de ter meu pensamento aclarado.
O que me tem incomodado incessantemente é a questão de o que de fato o cristianismo é, ou ainda quem de fato Cristo é, para nós hoje. Chegou ao fim o tempo em que se podia dizer tudo às pessoas por meio de palavras teológicas ou piedosas, e terminou também o tempo da introspecção e da consciência — e portanto o tempo da religião em geral. Estamos progredindo rumo a uma era completamente isenta de religião; da forma como são agora, as pessoas são simplesmente incapazes de serem religiosas. Mesmo os que se descrevem como religiosos não agem de forma alguma em conformidade com isso, e devem portanto estar se referindo a algo muito diferente com esse “religioso”.
Os mil e novecentos anos de pregação e teologia cristãs estão inteiramente embasados no conceito de uma religiosidade inerente à raça humana. O “cristianismo” foi sempre uma manifestação — talvez a verdadeira manifestação — de “religião”. Mas se um dia fica claro que esse “inerente” não existe de forma alguma, mas tratava-se de um forma transitória e historicamente condicionada de auto-expressão humana, e se o homem torna-se em consequência disso radicalmente irreligioso — e creio que seja mais ou menos esse o caso (do contrário como explicar, por exemplo, que esta guerra, em contraste com todas as anteriores, não está produzinho qualquer reação “religiosa”?) — o que isso quer dizer para o “cristianismo”?
Quer dizer que foi removida a fundação de tudo que havia sido até agora nosso “cristianismo”, e que restam uns poucos “últimos sobreviventes da era dos cavaleiros”, ou uns poucos sujeitos intelectualmente desonestos, dos quais podemos descender como “religiosos”. Serão esses os poucos escolhidos? Será contra esse dúbio grupo de pessoas que deveremos arremeter com zelo, ressentimento ou indignação, a fim de vendermos a eles os nossos bens? Devemos atacar um punhado de gente infeliz em sua hora de necessidade e exercitar sobre eles uma espécie de compulsão religiosa? Se não queremos fazer tudo isso, se nosso julgamento final deve ser que a forma ocidental do cristianismo foi, também ela, apenas um estágio preliminar para a completa ausência de religião, que tipo de situação emerge para nós, para a igreja? Existem cristãos sem religião? Se a religião é apenas uma vestimenta do cristianismo — e se mesmo essa vestimenta já teve diferentes aspectos em diferentes épocas — o que é então um cristianismo sem religião?
E se a forma ocidental do cristianismo foi apenas um estágio preliminar para a completa ausência de religião?
Barth, o único a começar a trilhar essa linha de raciocínio, não levou-a até o final, mas chegou ao positivismo da revelação, que em última análise é essencialmente uma restauração. Para o trabalhador comum sem religião (ou para qualquer outro homem) não há lucro algum aqui. As perguntas a serem respondidas devem ser certamente as seguintes: o que significam uma igreja, uma comunidade, um sermão, uma liturgia, uma vida cristã, num mundo sem religião? Como se fala de Deus sem religião — isto é, sem as pressuposições temporalmente condicionadas de metafísica, introspecção e assim por diante? Como se fala (ou talvez agora não possamos nem mesmo “falar” do modo como estávamos habituados a fazer) de um modo “secular” sobre “Deus”?
Em que sentido somos cristãos seculares e sem religião, em que sentido somos a “ek-klesia”, os que são convocados, sem olharmos para nós mesmos de um ponto de vista religioso como especialmente favorecidos, mas ao contrário pertencendo ao mundo de modo completo? Nesse caso Cristo não é mais um objeto de religião, mas algo inteiramente diferente: é realmente o Senhor do mundo. Mas o que isso quer dizer? Qual é o lugar de adoração e de oração numa conjuntura sem religião? Assumirá a disciplina secreta, ou alternativamente a diferença entre o último e o penúltimo, uma importância nova nesta situação?
Como se fala de um modo “secular” sobre “Deus”?
Preciso parar por hoje, para que a carta posso partir imediatamente. Devo escrever de novo dentro de dois dias. Espero que você entenda mais ou menos o que estou querendo dizer, e que não ache muito enfadonho. Adeus por enquanto. Não é sempre fácil escrever sem um eco, e você deve me perdoar se isso faz das minhas cartas algo como um monólogo.
Penso muito em você.
Seu Dietrich

Dietrich Bonhoeffer a Eberhard Bethge,
do campo de concentração de Tegel
30 de abril de 1944 

(via, que por sua vez surrupiou do Paulo Brabo)

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